Se nos portarmos bem, está prometido, veremos todos as mesmas imagens e ouviremos os mesmos sons e vestiremos as mesmas roupas e comeremos os mesmos hambúrgueres e estaremos sós na mesma solidão dentro de casas em bairros iguais de cidades iguais onde respiraremos o mesmo lixo e serviremos aos nossos automóveis com a mesma devoção e obedeceremos às mesmas máquinas num mundo que será maravilhoso para todo aquele que não tiver pernas nem patas nem asas nem raízes. (GALEANO, 2001, p. 239)
Enquanto teço as linhas e entrelinhas de um projeto, tentando manter uma linha teórica consciente e coerente, a espiral histórica não se detém e mostra, nos acontecimentos presentes, as determinações que já estavam inscritas nos possíveis de um passado próximo.
Na tela das televisões materializa-se em imagens impactantes a primeira guerra em tempo real que assistimos em nível global. O aparato midiático segue o aparato militar e a cena da guerra se assemelha a um set de filmagem onde a destruição se mistura ao ensaio e a preparação dos atores.
Em cada canto do mundo foi possível ver o presidente da mais poderosa nação, testando expressões e poses, ter o seu cabelo arrumado diante das câmeras, antes de anunciar os últimos detalhes da carnificina que vem promovendo.
No campo de batalha, a telemática engendra o mais recente reality show. Desfila ante nossos olhos uma miscelânea de imagens rápidas, de textos desconexos, de simulações e apelações ao sensacionalismo. A tela divide-se em janelas, mesclando o desenho televisivo ao desenho da internet. Imagens e textos filtrados nos chegam iguais, seja qual for o canal de informações. Emerge um sentimento de irrealidade e de perda de sentido que nos assalta a cada evento. Comer pipocas assistindo ao bombardeio de Bagdad é aceitar como banal o sofrimento humano, aceitar a insensibilidade, nos desumanizar um pouco a cada dia.
Da globalização econômica, chegamos a globalização da cultura e dos sentimentos humanos. Na sociedade espetáculo , o sofrimento, a miséria e até a guerra podem ser estetizados e consumidos após o jantar. E, nisso, o desenvolvimento científico e tecnológico tem participação em forma e conteúdo, uma participação que urge ser discutida, desmistificada e posta às claras a todo cidadão deste planeta.
A privatização dos serviços de tratamento e distribuição de água será um dos principais temas do Fórum Mundial da Água, que será aberto neste domingo (16) em Quioto, Japão. O evento ocorre até o dia 23 e terá a presença de diversos chefes de Estados, representantes de organismos multilaterais e ONGs. A Agência Carta Maior dará ampla cobertura e, para isso, enviou ao Japão um repórter especial.
Recebi esta semana um texto do Karel Kosik, traduzido pelo Leandro Konder. Somente hoje pude ler e gostaria de compartilhar aqui um trecho:
"Vivemos numa época pós-heróica. Isso não significa que no século XX não se realizem ações heróicas; significa apenas que tudo que se faz de bom, grande, corajoso e heróico, tudo que se cria de belo e poético, é arrastado na correnteza da banalização e da desindividualização, perdendo sua originalidade e sua força. O poder que influencia fortemente a opinião pública e amesquinha todas as coisas é a alma de lacaio.
O lacaio não conhece heróis. Ele não é, sobretudo, capaz de reconhecê-los. O que caracteriza sua visão do mundo consiste no fato de que ela reduz tudo à escala da banalidade. O ponto de vista do lacaio só lhe permite enxergar motivações amesquinhadas, inveja, pequenas safadezas.
No tempo de Goethe e de Hegel, os lacaios conheciam a intimidade dos seus patrões e por isso não podiam vê-los como heróis; hoje em dia, contudo, o olhar dos lacaios se instalou na visão do mundo dos patrões e dita normas de gosto e de moral: consome avidamente as fofocas e as intrigas da imprensa dos boulevards e julga tudo com seus critérios frívolos e sumários.
Um segundo empecilho no caminho da possibilidade do trágico, no nosso tempo, está na banalização e na domesticação da morte. A morte perdeu o poder que tinha de abalar profundamente os seres humanos e é digerida com certa rapidez no dia-a-dia. A morte do outro, do próximo, não ameaça nos desestruturar: ela é quotidiana, superficial, pouco significativa. Ela nos chega no meio de múltiplas imagens, sucessivas informações e sensações confusas; em seguida, desaparece, sem deixar traços."
Chegou, enfim, um tempo em que tudo o que os seres humanos haviam considerado inalienável tornou-se objeto de troca, e tráfico e pode alienar-se. É o tempo em que as coisas mesmas, que até então eram comunicadas, mas nunca trocadas; dadas, mas nunca vendidas; conquistadas, mas nunca compradas – virtude, amor, opinião, ciência, consciência etc – em que tudo, enfim, passou para o comércio. É o tempo da corrupção geral, da venalidade universal ou, para falar em termos de economia política, o tempo em que qualquer coisa, moral ou física, tendo-se tornado valor venal, é levada ao mercado para ser apreciada por seu valor adequado. (Marx, Miséria da Filosofia).
Sonhar pode não custar nada, aparentemente, ou pode custar muito. Pode custar abandonar aquilo que não é próprio do sonho que é o dia-dia. Abandonar o cotidiano, o real e imperfeito, feito de pessoas e de momentos. Idealizar, o momento único, perfeito e total.
Sonhar demais pode custar não conseguir ver que todos os caminhos se cruzam e que as pessoas seguem por um tempo juntas partilhando das coisas que podem dar umas as outras, na sua realidade, no seu momento...
Pode custar ver só o imediato e não o possível. Se agarrar na utopia do sonho e não transcender a circunstância deste nosso espaço-tempo.