quarta-feira, setembro 28, 2005

direito à vida, uma questão de classe


Eu já havia conversado sobre aborto em algumas rodas por aí, quando este assunto surgia e a conversa virava debate. Nestes momentos, os presentes se dividiam nas opiniões e abordagens. Além das opiniões conflitantes, era evidente a variedade de lugares de onde partiam e que sujeitos coletivos transpareciam nas falas.
Uns partiam do ponto de vista jurídico, como se tudo pudesse se resumir na lei, nos direitos legais e numa determinada ética. Outros procuravam colocar o assunto sob um ponto de vista da espiritualidade, da moral e dos direitos humanos, tanto da mulher, quanto do feto, trazendo ou não a religião para ajudar na argumentação. Outros, ainda, traziam o ponto de vista da biologia, da fisiologia, procurando situar o que é e o que não é vida e todos os meio termos possíveis, se possíveis são.

E a coisa se enrolava. Se é certo que um ser humano em formação tem direitos, será que estes são reconhecidos somente a partir da formação de seu sistema nervoso? Falando nisso, quando é mesmo que este se forma? E quanto aos direitos da mulher sobre seu corpo? E do ponto de vista legal? A pessoa tem direitos, mas se torna pessoa exatamente quando? Hoje, o mesmo avanço da medicina que proporciona que se possa detectar má formação nas primeiras semanas de vida, também proporciona que fetos com menos de cinco meses de gestação sobrevivam e se desenvolvam normalmente. É difícil achar um consenso que una o jurídico, o biológico, o ético e o espiritual.

No meu entender, a interrupção da gravidez, interrupção da vida de um ser em formação é uma decisão difícil e fora da possibilidade de participação daquele que vai sofrer indefeso a pior parte do processo. Uma decisão que fere o direito mais fundamental: o direito à vida. É, portanto, uma questão difícil que não pode ser tratada como se fosse uma questão única, pois nela se misturam e contrapõem inúmeras outras questões e diferentes direitos. Em relação à descriminalização, cada caso é um caso e, de cara, ficaria fora de qualquer possibilidade de descriminalização e, muito menos, de legalização, o aborto cuja motivação fosse apenas a vontade dos pais ou gravidez indesejada. Porém, apontar isso, desta forma, implica um julgamento que não é direito de ninguém fazer.

Atualmente, o aborto no Brasil é permitido nos casos de incesto, estupro e para salvar a vida da gestante. A interrupção da gravidez nos casos previstos deveria ser realizada pelo sistema público de saúde. O que hora está em discussão é o anteprojeto de lei de descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação e em qualquer idade gestacional, quando a gravidez implicar risco de vida à mulher ou em caso de má-formação fetal incompatível com a vida. O anteprojeto de lei assegura que o SUS realize a interrupção da gravidez e determina, também, que a intervenção seja coberta pelos planos privados de assistência à saúde. Além disso, revoga os artigos do Código Penal que tratam o aborto como crime e institui a necessidade de autorização do Ministério Público, além dos responsáveis legais, para que a interrupção seja realizada em menores de 18.

Penso que descriminalizar o aborto quando a gravidez implicar risco de vida à mulher ou em caso de má-formação fetal incompatível com a vida é uma medida acertada, pois se trata, em última instância, de preservar a vida. Muito mais justificadamente que nos casos de incesto ou estupro, onde poderiam ser seguidos outros caminhos de cuidado e amparo, preservando-se as vidas. Porém, o acionamento deste amparo legal deve ser rápido e facilitado, sem custos e livre da morosidade de tramitação dos processos, ou não terá efeito.

É possível, ainda, discutir o que seria risco de vida e anomalia incompatível com a vida. Anomalia incompatível com a vida é, por exemplo, o caso de fetos anencéfalos. Um feto anencéfalo, segundo entendi, tem todas as funções vitais quando em formação, mas não está vivo, encontra-se como um paciente que tem morte cerebral, suas funções vitais cessam após o nascimento da mesma forma que as funções vitais dos pacientes com morte cerebral cessam quando são desligados os aparelhos que as mantém.

Sei que há pressão grande para que o aborto seja permitido por lei em qualquer circunstância, porém, isso está longe de ser uma medida progressista e libertadora. É uma assinatura embaixo da irresponsabilidade e da falta de condições de vida, educação e saúde. No nível daquela idéia de acabar com a pobreza acabando com os pobres, seja nas alternativas aparentemente bem intencionadas de esterilização em massa, seja pelas soluções definitivas dadas pelos esquadrões da morte. Por outro lado, alguns estudos comprovam que a ilegalidade não impede que os abortos continuem a ser feitos, implicando na morte e na mutilação de muitas mulheres.

Até aqui não falamos do contexto onde estes direitos e leis atuam. E estes são determinantes das coisas serem como são. Quem morre em casa e nas clínicas clandestinas é quem não pode pagar por um atendimento digno. E esta é a questão de classe. Engravidar prematuramente, sem condições materiais, sem condições de saúde física e mental, sem conhecimento e, portanto, sem condições de planejar sua vida e reprodução é uma possibilidade muito real para as mulheres das camadas mais pobres e desamparadas da população. Porém, isso não justifica que o ser humano em formação, conseqüência de todo este problema, seja eliminado como se causa fosse. Antes cabe mudar uma sociedade que tudo tem e tudo pode, mas só para alguns.

É por aí que este assunto me fala mais de direito a vida, num sentido amplo, do que de direito à interrupção da vida, num sentido particular, e, também, me impede de ver uma solução que atenda todos os casos e que atue sobre as causas evitando as conseqüências.

Ainda sim, nesta questão tão desafiadora, o ponto de vista último é o pessoal, individual, intransferível compromisso consigo em todos os sentidos. Não há lei que possa nos salvar daquele juiz interior, da dor da decisão e do convívio com suas conseqüências. Não há tecnologia que possa simular o estar na situação de ter de tomar a decisão de interromper uma gravidez e nem intuição que possa nos guiar em previsões neste sentido. E não há, também, forma de escapar das perdas. Por isso, o assunto segue sendo controverso e difícil, trazendo mais questões que soluções possíveis.

* Este texto é a minha parte na blogagem coletiva do Nós na Rede pelo Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe. Visite o Nós na Rede e veja a listagem dos demais blogs que aderiram ao movimento.

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