quinta-feira, março 18, 2004


[a montanha mágica]


Assim como as comunidades, de certa forma, moldam seu ambiente, o inverso acontece, também. Um determinado lugar, rotinas, práticas, similaridades e diferenças, um determinado tempo, temporalidades próprias, simultaneidades, anacronismos. Tudo é forma e dá forma para que se engendre um tipo de agregado humano.
Onde o tempo gravita em torno de refeições, curativos, tecnologias, estados e sensações, todos se acoplam em relações que têm outra lógica. Uma lógica que tem como centro a corporeidade, a fragilidade da vida, a indignidade da dor. Relações que geram solidariedades e põem em xeque identidades.
Cláudia hoje foi até a biblioteca do hospital, sem o jaleco, sem o estetoscópio, num outro papel. A camisola com bonecas pintadas na frente fazia ela parecer tão menina e tão frágil, empurrando aquele carrinho com o soro. Uma conexão estranha naqueles tubos todos. Um certo desamparo que transita no olhar.
Déia está fora de suas aulas de informática para crianças 'especiais'. Em vez do computador, coletes reforçados e os pequenos dutos onde, de tanto em tanto, novas drogas são injetadas.
A comunidade, porém, se amolda aos coletes, aos dutos, agulhas e soros. E se une em pequenas solidariedades. Dividem presentes, comentam as visitas como se fossem de seres de outras terras, estranhos. O tempo da comunidade é outro, os fluxos atípicos.
O padre chega de pijama, ele mesmo num novo papel e senta para conversar. A turma de branco entra e sai atarefada. Aos poucos todos se conhecem. Os rituais se repetem, num tempo estranho, deslizante.
A montanha mágica vai enredando aos pouco. No espaço-tempo alterado, cada um é Hans Castorp à sua maneira.

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